O barulho do choro se misturava à música suave, em um culto de domingo na igreja Vivo Por Ti, em Taguatinga. Durante a celebração, o pastor Anderson Silva, fundador dessa congregação, convidou homossexuais que se sentissem à vontade para se levantar. Em seguida, chamou os frequentadores para a cerimônia de lava-pés.
Evangélicos ajoelharam-se diante de homossexuais para pedir desculpas pela rejeição sofrida dentro das igrejas. Diante deles, haviam bacias com água e pessoas disposta a quebrar os próprios preconceitos. “Desculpe se fiz você sofrer”, diz uma mulher, enquanto massageia os pés de outra. As duas se emocionam e a cena se repete dezenas de vezes.
O lava-pés é citado na Bíblica, Jesus o realiza durante a Última Ceia. Na maioria das igrejas, a cerimônia ocorre na quinta-feira da Semana Santa. A atitude remete à hospitalidade. Quando um visitante chegava, o anfitrião providenciava o necessário para lavar-lhe os pés. A prática também simboliza humildade.
O ato simbólico pode significar muito para quem já sofreu discriminação dentro da igreja. Guilherme Sousa é homossexual e frequenta a Vivo Por Ti há 4 anos. Teve os pés lavados na cerimônia proposta pelo pastor, em abril de 2015. “Sempre frequentei igrejas e sempre estive em conflito sobre como lidar com a questão da homossexualidade e o desejo de ser cristão. Foi difícil acreditar que aquilo (lava-pés) estava acontecendo. Vieram à memória todas as humilhações e restrições que já me fizeram em nome de Deus”, lembra.
Por também se sentir deslocado nas igrejas tradicionais, Anderson Silva criou o próprio grupo religioso. Nele, todos são aceitos. Velhos, jovens, travestis, transexuais, homossexuais, militares, artistas, casais hétero, pessoas solteiras, moradores de rua, pessoas ricas e pessoas pobres convivem durante as celebrações da Vivo Por Ti. Há cultos com apresentação de dança, música, exibição de artes plásticas e nos quais se fala sobre aborto, feminismo e outros temas polêmicos, sem tom proibitivo.
“Nós discutimos valores, não comportamentos. Consideramos uma obrigação ainda maior amar quem pensa diferente. Deus não se importa se você tem o corpo tatuado, não há nada na Bíblia que diga que isso é bom ou ruim. Não estamos aqui para defender nenhuma bandeira. Não é questão de concordar, mas sim de promover o respeito”, afirma Silva.
Anderson Silva, 37 anos, é casado com a também evangélica Keila Silva e pai de três crianças, uma delas com autismo. “Nós não somos uma família tradicional. Com a condição do meu filho, carregamos a dor da exclusão. Podíamos escolher nos amargurarmos ou fazermos a vida melhor”.
Ele, que tem o corpo cheio de tatuagens, cita poemas e letras de músicas nas suas pregações, pois considera artistas como profetas modernos.
Não raramente lê trechos de alguma canção de Cazuza, Renato Russo ou de Mano Brown. “Quanto mais você marginaliza alguém, mais nutrirá um sociopata. Como bem disse, Brown: “Frustração, máquina de fazer vilão”. A Bíblia também está sempre à mão.
Antes de fundar a igreja, Anderson era católico e trabalhava como gerente em um estúdio de tatuagens. Ia para a balada com uma Bíblia na mochila, para amenizar o medo de morrer. Usava drogas de quinta-feira a domingo e, em um momento de desespero, sentiu que precisava dar sentido à sua vida.
Daí veio a conversão à igreja evangélica tradicional, que não correspondeu às expectativas. Nessa época, o pastor já fazia trabalho social nas ruas. Se intitulava um “missionário de tribos urbanas”. Visitava áreas miseráveis, em busca de auxílio financeiro para famílias, se aproximava de travestis, prostitutas e de outras pessoas marginalizadas pela sociedade para ajudá-las.
A Vivo Por Ti nasceu há 10 anos, na escadaria do Conic, ao lado de uma boca de fumo. Migrou para uma sala de 30 metros quadrados, no mesmo local. Pouco depois, o número de integrantes aumentou e Silva quis ter um espaço físico mais adequado para cultos e outras atividades. Alugou um imóvel na C5, em Taguatinga Centro. Ali, as atividades se multiplicaram.
Pastor Anderson decidiu convidar pessoas homossexuais a participarem dos cultos, sem qualquer intenção de mudá-las. Foi o suficiente para perder 80% dos líderes do grupo e quase todo o dízimo doado pelos mais de 300 frequentadores. Sua postura provocou a ira de outros pastores evangélicos, que se recusaram a participar de eventos onde Anderson estivesse.
Anderson já esteve em uma situação difícil, como as pessoas que ajuda atualmente. Nasceu em Maceió, em um dos bairros mais pobres e violentos da capital de Alagoas. Tem uma história de vida marcada pela orfandade e pela miséria. O pai abandonou-o, junto de um irmão e da mãe, quando veio para Brasília formar uma nova família. “Minha mãe teve de implorar para que ele buscasse a gente, para a gente não morrer de fome. Viemos para Brasília começar de novo. Não posso agir com preconceito, não posso ignorar os problemas da sociedade, seria zombar de mim mesmo”, relata.
Seu corpo tatuado é uma mensagem para a vida. “As minhas tatuagens foram feitas depois da minha conversão. A tatuagem, para mim, era um compensador da falta de identidade, um pai postiço, substituto do que a vida me negou. Eu julgo que hoje estou pronto para me tatuar como um homem livre”
O pastor não se preocupa com julgamentos, sejam eles sobre sua aparência ou a respeito de seu modo de viver a religião. Pede ajuda à etimologia para se fazer entender. A palavra grega ekklesia, da qual deriva-se igreja, tem dois radicais: ek (para fora), e klesia (chamados). A resposta às críticas pode vir da própria Bíblia:
“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, Mateus, 13:9.
Fonte: Metropoles